Como
as lições que o papa Francisco traz da vida na Argentina e do convívio com
religiosos latino-americanos devem nortear a revolução que está em curso no
Vaticano
"Quis Deus, na sua amorosa
providência, que a primeira viagem internacional do meu pontificado me
consentisse voltar à amada América Latina.” Foi com estas palavras, no primeiro
discurso oficial no Brasil, que o papa Francisco celebrou sua chegada ao País,
na segunda-feira 22, para a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro.
Mas classificar apenas de providencial a passagem do papa pelo Brasil não faz
jus à importância que ela tem para o papado de Francisco. De volta ao
continente que o gestou, o argentino ganhou de presente a oportunidade de
reforçar os valores que influenciaram sua formação religiosa e de apresentá-los
ao mundo como futuros norteadores de seu pontificado. Fez isso às claras,
diante de milhões de pessoas que não se intimidaram com a chuva ou as ameaças
de manifestações. “Da visita, ficamos com a certeza de que Francisco é, antes
de tudo, um religioso marcadamente latino-americano – é um dos nossos”, diz dom
Angélico Sândalo Bernardino, 80 anos, bispo emérito da diocese de Blumenau, em
Santa Catarina.
Há consenso entre os especialistas que existe uma revolução em
curso na Igreja Católica, capitaneada por esse jesuíta com alma franciscana,
com fôlego para alcançar o que foi feito por João XXIII à época do Concílio
Vaticano II (1962-1965). “Ele está disposto a fazer uma grande transformação na
Igreja”, confirma a própria irmã do santo padre, Maria Elena, 65 anos, que vive
em Ituzaingo, na Grande Buenos Aires. A transformação a que muitos se referem é
a que aproxima a Igreja do seu rebanho. No Brasil, Francisco mostrou, na
prática, que isso é possível. No Rio de Janeiro, o papa desceu do trono. Preso
no congestionamento, e no corpo a corpo com os fiéis, passou a mensagem de que
a verdade está nas ruas, não nos palácios.
A Igreja Católica da América Latina professa uma
religiosidade própria. Jorge Bergoglio é parte desse caldo
cristão e é com ele que deve reconstruir a combalida instituição. “Através de
ações singelas e silenciosas, ele vai tomando medidas que geram repercussões
sérias. Como o primeiro papa latino-americano, ele vai atualizar a Igreja para
este milênio”, afirma o professor de filosofia da Uerj, Alexandre Marques Cabral.
Uma característica marcante dos
católicos da América é o ecumenismo. E isso é muito presente no argentino
Bergoglio, que, na última semana, mostrou ao mundo que, se arrasta multidões de
católicos, também cativa integrantes de outras religiões. Caso da cabeleireira
evangélica Thaís Ramos, que teve a filha Izadora, 1 ano, beijada pelo papa, no
centro do Rio. “É muito emocionante, nem sei explicar a sensação.” O teólogo
presbiteriano Jouberto Heringer, professor da Faculdade Mackenzie Rio, acredita
numa maior aproximação entre evangélicos e católicos a partir de agora. “O papa
Francisco é mais coerente com o Jesus Cristo dos Evangelhos e nem tanto com os
dogmas da Igreja que aí está”, afirma. “Assim como o bispo anglicano da África
do Sul Desmond Tutu e o pastor americano Martin Luther King (1929-1968), é uma
personalidade que conquista a admiração geral por sua religiosidade.” O papa
busca inspiração no cristianismo mais puro também na sua linguagem, uma prática
comum nas dioceses da América. Tanto no Rio quanto em Aparecida (SP), Francisco
usou imagens muito claras e falou por meio de parábolas. Isso tem o poder de
tocar o coração dos fiéis, reaproximar as ovelhas desgarradas e atrair novos
devotos.
O traço mais marcante da Igreja da América é a
opção pelos pobres. E é incontestável a atenção que o argentino tem dispensado
aos que habitam o que ele mesmo classificou de “periferia existencial” – os
pobres, os humilhados e os que vivem à margem da sociedade. É impossível dizer
que papas antes dele não deram atenção aos que sofrem, mas Francisco, com o
traquejo e o conhecimento que amealhou depois de décadas nas ruas em seu país,
compreende a complexidade desta condição como nenhum outro pontífice. “Ele entende,
por exemplo, que antes de ensinar aos esfomeados as regras da Igreja Católica,
é preciso dar comida, abrigo e carinho”, afirma Andreas Englisch, 50 anos,
correspondente do Vaticano e autor do livro “Francisco - o papa dos humildes”
Ele sabe que, onde não há o que comer, quem
discursa sobre humildade e abnegação e vive como um monarca absolutista, como
vive um papa, tem pouca credibilidade. “Francisco busca a coerência entre
discurso e modo de agir”, diz Fernando Altmeyer, professor de
teologia e ciências da religião da PUC-SP.
Ainda que essa coerência seja uma meta difícil de se atingir agora que, como papa, a ele precisa se submeter às obrigações e protocolos de um chefe de estado, com habilidade, Francisco vem conseguindo fazer adaptações. Para a visita ao Brasil, por exemplo, ele conseguiu convencer seus seguranças a deixá-lo circular em um papamóvel sem janelas blindadas ou em um Fiat Idea, também sem blindagem e sem sequer janelas de acionamento elétrico. Outras pequenas vitórias incluem interrupções não planejadas durante carreatas para abraçar e beijar fiéis e o direito de carregar o próprio óculos, além do de se informar da hora pelo próprio e austero relógio de pulso. “Francisco tem um despojamento típico dos latino americanos”, diz dom Angélico. Na quinta-feira 25, na cerimônia no Palácio da Cidade, teria dito ao prefeito Eduardo Paes .”Estou fazendo como você falou para mim: não estou respeitando as regras e fazendo a maior bagunça.”
A alegria, aliás, é um tema recorrente no
argentino. Ainda que eleito com a missão ingrata de reformar uma igreja que
vive uma crise sem precedentes recentes, ele se recusa a desanimar e cobra o
mesmo de seus seguidores. Em discurso aos 200 mil fiéis que se aglomeraram na
Basílica de Aparecida na quarta-feira 24, ele foi categórico ao dizer que “o
cristão não pode ser pessimista, não pode ter uma cara de quem parece estar num
constante estado de luto”. Questões como a transferência da missa e da vigília
do Campus Fidei em Guaratiba, na Zona Oeste, no sábado 27, por causa da chuva
incessante que transformou o local num lamaçal, para a praia de Copacabana, na
Zona Sul, são simples desvios de percurso para o argentino. Especialistas
interpretam o otimismo papal como mais uma virtude conquistada pelo pontífice
depois de anos enfrentando problemas em Buenos Aires. Ele reconhece as
dificuldades que se apresentam, mas não se deixa desanimar. Ao tratar,
nominalmente, de injustiças e corrupção durante discurso na quinta-feira 25 à
massa de fiéis da comunidade de Varginha, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, ele
orientou os jovens: “Nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se
apague a esperança”, disse. “A realidade pode mudar.” É essa igreja
transformadora que caracteriza o catolicismo da América, mas que vinha sendo
contida pela hierarquia romana.
A bagagem latino-americana de Francisco traz à
baila outros trunfos ao papel de reformador que em breve ele terá de assumir.
Ainda que colocada um pouco de lado pelos papas João Paulo II e Bento XVI, a
forte agenda social das igrejas da região nos anos 70 e 80 certamente tiveram
influência sobre Francisco. “No Brasil, até meados dos anos 90 nosso episcopado
progressista denunciava violações de direitos humanos e era a voz dos que não
tinham voz”, diz o dominicano Frei Betto, adepto da teologia da libertação e
ligado a diversos movimentos sociais. Vivia-se o auge das Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs), braços comunitários da igreja lideradas por leigos que
funcionavam como uma espécie de território livre para discussões políticas e
profundo engajamento social. É nesse tecido cultural que Bergoglio se insere.
Como membro do Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), experiência única
no mundo a reunir padres, bispos e cardeais de uma região tão grande para
discutir temas de interesse comum, o atual papa tinha contato com todas essas
ideias. Em 2007, aliás, o cardeal Bergoglio presidiu a comissão que redigiu o
documento final da Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e
Caribenho, sinalizando a grande capacidade de negociação do atual papa.
Francisco é um homem de princípios bem delimitados,
mas de bondade, simpatia e capacidade de surpreender infinitas. A caminho da
missa que rezou em Copacabana na fria noite de quinta-feira 25 parou a comitiva
para sorver o chimarrão de um peregrino, que lhe ofereceu a cuia. Em encontro
com outro fiel no mesmo trajeto, trocou a mitra que usava pela que lhe foi
oferecida. “Sempre ouvi dizer que o carioca não gostava de frio e de chuva”,
disse ao chegar ao palco. “A fé de vocês é mais forte do que a chuva e o frio”,
afirmou. Com a leveza de um amigo, Francisco aproxima, lentamente, o fiel da
distante igreja. E como pontífice, ele já começou a reforma da alquebrada
instituição. “Quero que a Igreja vá para as ruas, que nós nos defendamos de
toda acomodação, imobilidade, clericalismo”, disse em outro discurso, este na
Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. É o começo de uma nova era na Igreja
Católica Apostólica Romana. E quem está no comando é um latino-americano.
Mariana Brugger,
Michel
Alecrim,
Tamara Menezes,
Wilson Aquino,
João Loes e Rodrigo Cardoso
Nenhum comentário:
Postar um comentário