Este ano a Igreja Católica no
Brasil, no tempo da Quaresma, quando convida à conversão, oração e reflexão,
desenvolverá a Campanha da Fraternidade, que trará como tema: Fraternidade e
tráfico humano. E seu lema será: É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl
5,1).
Mais de 200 anos após o 13 de Maio,
que extinguiu a escravidão no Brasil, milhões de pessoas continuam sendo
tratadas como mercadorias, passíveis de serem vendidas, compradas e exploradas.
A ONU por meio do protocolo de
Palermo (2003) define o tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte,
a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à
ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter consentimento de uma pessoa
que tenha autoridade sobre outra para
fins de exploração”.
As vítimas do tráfico humano são
retiradas de seu ambiente, de seu país ou cidade, e passam a ter sua mobilidade
reduzida, pois são usadas para a exploração sexual ou de trabalho. Outros meios
para o aliciamento das pessoas são as propostas de trabalho na agricultura,
pecuária, comércio, construção civil ou oficinas de costura.
A pessoa humana criada por Deus (Gn
1, 26-27), vista como fruto querido e amado da criação divina, deixa de ser
sujeito capaz de liberdade e passa a ser tratada como objeto, um produto, uma
mercadoria, que se vende, troca, transporta e explora. O tráfico humano e a exploração
privam a pessoa da sua dignidade, da sua liberdade e capacidade de orientar sua
vida. Por outro lado, o reconhecimento da filiação divina possibilita que, por
Jesus Cristo, faz com que todos sejam dignos de ter sua vida respeitada. Dessa
forma, tudo o que vai contra a vida também vai contra o projeto do Reino de
Deus, realidade onde “justiça e paz se abraçarão” (Sl 85,11), pois o Senhor é o
Deus que liberta e salva os oprimidos, liberta das algemas da opressão; pois
leva ao cumprimento pleno o plano salvífico de Deus (Lc 4, 14-21).
No Brasil, mais de 25 mil pessoas
prestam serviços, presas em fazendas, garimpos e carvoarias. De 1995 a 2008
cerca de 33.750 foram libertadas do trabalho escravo. Em 21 estados da
Federação já foram encontrados trabalhos escravos. No ano de 2000 foi
desmantelada uma rede de tráfico humano para a venda de órgãos que ligava
Pernambuco e a África do Sul. Em 2004, o Ministério Público denunciou 28
pessoas por este crime. A comercialização de 30 órgãos movimentou 4, 5 milhões
de dólares neste esquema criminoso. Há ainda o tráfico interno de pessoas no
Brasil para o trabalho em situações ilegais e subumanas. O nosso país,
infelizmente, é também importador de mão de obra dos países vizinhos,
principalmente da Bolívia, do Peru, do Paraguai, do Haiti e da Colômbia.
No âmbito internacional, dos 2,5
milhões de pessoas traficadas, 43% são para exploração sexual, 32% para
exploração econômica e 25% para as duas finalidades ao mesmo tempo.
O tráfico humano está diretamente
associado ao modelo de desenvolvimento presente na economia, pois a
competitividade e o desejo de lucro pressionam para que se reduzam os gastos do
trabalho, a “flexibilizar” as leis trabalhistas para que o produto final chegue
a um preço mais baixo e gere um consumo maior. Porém, tais mercadorias, que
alimentam a sede de lucro, vem da exploração escrava de homens, mulheres e
crianças — que têm sua liberdade cerceada, seus planos e projetos desfeitos,
seus laços afetivos relegados ao esquecimento.
Esta Campanha da Fraternidade
favorece-nos em gestos concretos claros e pertinentes:
- estar atento para perceber
pessoas que aliciam outras para o trabalho e atividades que não respeitam as leis
trabalhistas e denunciá-las;
- buscar em nossas relações
trabalhistas o ato de pautar pela justiça e honestidade para com as leis
trabalhistas e os direitos dos trabalhadores;
- dar prioridade à compra de
mercadorias de lugares e regiões que não utilizem mão de obra explorada
desrespeitando os direitos dos trabalhadores;
- educar para a vida de
liberdade, reconhecendo-se como filhos e filhas de Deus, criados em dignidade e
amor.
A fé cristã favorece que cada
cristão se reconheça construtor de um mundo novo, onde o Evangelho encontre
acolhida nas estruturas sociais e nos corações humanos; onde a vida em
plenitude seja a meta concreta de uma vida imersa em Cristo. Em Jesus somos
plenamente livres, a lei do Amor deve ser vivida plenamente, sem
diferenciações, a ponto de que possamos dizer, como São Paulo: “Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim”(Gl 2,20). Pois sabemos que o Amor nos
criou e se entregou de forma plena e radical na cruz. Assim, ninguém tem a
capacidade e o poder de inibir a liberdade do outro, pois “todos são filhos de
Deus pela fé em Jesus Cristo” (Gl 3, 26).
* Geraldo Trindade, diácono na
arquidiocese de Mariana, é bacharel em filosofia e formado em teologia pelo
Instituto São José de Mariana
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